#14 Josefa teme a chuva
O dia começou abafado na Vila Santa Terezinha. Josefa já estava suada enquanto passava o café. Café e pão eram tudo que ela e os três filhos iriam comer até o meio-dia, quando quem sabe Duda, sua mais velha, traria batatas e um pedaço de charque da feira. No horizonte, nuvens cinzas-chumbo despontavam anunciando inquietação. Chuva forte nunca era boa notícia na vila.
A crise climática anunciada pelos cientistas há décadas já é alvo de discussões em grupos temáticos de órgãos internacionais, além de já estar presente na pauta de programas de governo pelo mundo afora. Nesse âmbito, as ações até agora se mostraram pouco efetivas e não há previsão de melhora em um futuro próximo. Na verdade, o mais importante é que a crise climática já é um assunto presente nas rodas de conversa das pessoas comuns, mesmo que elas não usem os jargões difíceis dos cientistas. A população olha apreensiva para o céu, pensando se aquela nuvem diferente, com aquela formação, naquele dia especialmente quente e úmido significa mais uma tempestade. Já não há meios de prever o tempo no dia a dia baseado nas sensações naturais como os antigos faziam…
Do outro lado da cidade, em um bairro nobre de casas de alto padrão, Bianca fazia exercícios na pequena academia montada no mezanino. Na Smart TV, a previsão do tempo falava em alerta vermelho para a região, com possibilidades de inundações, a previsão era de 180 mm para as próximas 6 horas, um absurdo desconcertante se comparado à média histórica. No ano anterior, o bairro ficou alagado por dois dias, enquanto a família se recolhia à sua casa na Serra. Bianca alcançou o celular impaciente e avisou ao marido que eles precisavam arrumar as malas para subir com os dois filhos ainda hoje.
No mesmo período do ano passado, a estrada ficou bloqueada por 30 dias. Nos últimos tempos as pessoas estão se perguntando todas as manhãs se seria mais uma ventania de primavera. Se já daria para planejar o verão no clube e se as cobertas já deveriam ser guardadas. Essas trivialidades do dia-a-dia parecem bobagem se comparadas aos eventos extremos recentes, como as enchentes que devastaram o Rio Grande do Sul em maio de 2024 (Ouça o Podcast O fim do futuro), as secas na Amazônia mais longas a cada ano (A morte lenta da Amazônia, BBC Brasil) e os incêndios que ameaçam a biodiversidade do Pantanal todos os anos (Nota técnica do Mapbiomas).
Do outro lado do planeta, Brian Miller, CEO (diretor) do Grupo Stellantis, líder mundial no setor de veículos, comemora ao desligar o telefone a caminho do jatinho particular em Michigan, USA. Ele acaba de fechar mais um negócio milionário de expansão de vendas de veículos individuais na América do Sul, incluindo o Brasil. No jatinho, sua secretária indica que, pelas previsões do tempo, a melhor casa para passar suas duas semanas de férias será em Saint-Tropez, na Riviera Francesa. Sua jovem esposa e dois dos seus filhos mais jovens já estão a caminho no segundo jatinho da família. Life is good!
Cientistas prevêem que a crise climática atual irá causar alterações ainda mais avassaladoras e de longo prazo no clima do planeta, como a perturbação de importantes reguladores climáticos, como a diminuição das taxas de evapotranspiração de florestas tropicais e a interrupção de correntes oceânicas. No primeiro caso, correntes de ar úmidas seriam interrompidas diminuindo reservatórios e ameaçando abastecimentos de grandes cidades e de importantes áreas de agricultura. Já no segundo caso, a interrupção, por exemplo, da corrente do Atlântico Norte poderia colocar o norte da Europa em uma nova era do gelo, o que já foi até classificado como “risco para Segurança Nacional” pela Islândia.
Enquanto isso, Saint-Tropez estava ensolarada e uma leve brisa fresca balançava os cabelos e vestidos das jovens senhoras turistas. Claro que se isso um dia mudasse, algoritmos modernos iriam usar os dados climáticos para apontar o próximo paraíso tropical para a nata mundial a um jatinho de distância.
Os países ditos desenvolvidos, incluindo os Estados Unidos, foram responsáveis pela maior parte das emissões de carbono na atmosfera comparados a países “menos desenvolvidos” (para uma discussão sobre o que é desenvolvimento). Algumas perguntas são interessantes para você pensar antes de continuar a ler. Quais países você acha que terão mais infraestrutura para prever e mitigar os efeitos da crise climática? DICA: alguns dos seus mais ricos cidadãos já estão construindo bunkers autossustentáveis. Qual país se retirou do Acordo Climático de Paris e deu dedinho para a COP deste ano?
Isso mesmo que você pensou: um dos países que mais lucrou com as emissões de carbono! Contudo, são os países menos industrializados que vão arcar com a maior parte da conta climática!
Afinal, onde está a justiça climática? Precisamos procurá-la com mais afinco, até porque dentro do nosso modo de vida e produção modernos, a desigualdade global se reflete nas escalas regionais e locais também.
Muito longe da Riviera, uma tempestade torrencial caía há mais de três horas enquanto a SUV importada de Bianca avançava pela água pouco antes da subida da Serra. Pelo retrovisor, alguns carros já estavam parados e mais abaixo um carro popular ia sendo arrastado, parcialmente submerso em direção ao canal central da pista. Dentro dele, um rosto pardo qualquer se contorcia em desespero. Bianca parou naquele olhar pelo retrovisor por quase um segundo, voltando para sua própria situação logo em seguida. Para completar o final de semana arruinado, ela pensava na sua funcionária, que estava isolada na vila e não conseguiu chegar a tempo de subir junto e cumprir suas funções. Era um absurdo que eles, pagadores de impostos, tivessem que passar por isso como se fossem qualquer um.
Dentro de qualquer país “menos desenvolvido” e desigual, as regiões não são afetadas da mesma forma. Quais cidades? Quais bairros? E o mais importante, quem são os mais vulneráveis? Qual a sua identidade social?
Na Vila Santa Terezinha, lama. Moradores atordoados tentavam resgatar as pessoas embaixo das dezenas de casas soterradas. Um saco de batatas e uma mão para fora da terra. Tudo o que sobrou de Josefa.
Segundo o IBGE, 74% das moradias chefiadas por pessoas pretas ou pardas sofrem de insegurança alimentar e deste montante, 60% é chefiado por mulheres. Essa também é a identidade social de quem mais vai arcar com as consequências da crise climática no Brasil. A conta sempre chega e ela não falha.
Agora em novembro, cientistas, pesquisadores, organizações não governamentais e representantes dos 195 países estão reunidos em Belém do Pará na COP 30 (a Conferência do Clima das Nações Unidas). Na pauta, a crise climática e o aumento iminente de 1,5°C na temperatura média do planeta, limite que, segundo especialistas, iremos alcançar nos próximos 10 anos. O foco agora está voltado não apenas para redução das emissões, mas também para a mitigação (e.g. que se traduz em programas que visam a retirada de carbono da atmosfera) e adaptação (e.g. políticas e planos de contingência para lidar com o que já mudou, como os planos de migração assistida na Austrália).
Representantes de minorias e setores sociais diversos chamam a atenção para a necessidade de se discutir sobre fundos de financiamento a serem gastos em programas de mitigação e adaptação nos países mais vulneráveis. A Anistia Internacional no Brasil, representada pela Diretora Executiva Jurema Werneck, critica o distanciamento da COP30 do componente mais importante da crise climática: o ser humano. Principalmente porque esse ser humano tem identidade e endereço.
A justiça climática chegará tarde para milhares de pessoas nos países e regiões mais pobres. E agora certamente não fará mais diferença para Josefa e sua família.
Até mais,
Cintia Freitas
Os gifs desta edição foram feitos pela Nicole Manes.
Curadoria
Podcast: O fim do futuro.
Reportagem: A morte lenta da Amazônia, BBC Brasil.
Nota técnica do Mapbiomas sobre as queimadas do Pantanal.
Reportagem sobre os Rios voadores que levam massas de ar úmidas da Amazônia para outras regiões do sul.
Reels do Instituto Serrapilheira (@institutoserrapilheira) sobre como a evapotranspiração das florestas localizadas em Terras Indígenas irriga a agricultura brasileira.
Reportagem da Reuters que mostrou a preocupação da Islândia com a perturbação da Corrente do Atlântico Norte que provê calor para o norte da Europa.
Reportagem com gráficos mostrando que as emissões de CO2 aumentaram nos últimos 30 anos, com o Brasil em quarto colocado, pois foram considerados não somente a indústria e a queima de combustíveis fósseis, mas também o desmatamento.
Reportagem/texto incrível do meu coração da Cláudia Antunes para a Sumaúma discutindo o desenvolvimento capitalista e sob outras óticas.
Reels no Instagram da BBC Brasil mostrando o bunker milionário que o Mark Zuckerberg está construindo em Kauai, ilha do Arquipélago do Havaí para se proteger do apocalipse.
Trump fazendo caquinha, acabando com todas as políticas climáticas do país que mais poluiu, saindo do Acordo de Paris.
Trump de novo, emburrado porque tá todo mundo falando de coisa ruim enquanto deveriam estar queimando carvão para conquistar o mundo, dando dedinho na cara da galera woke.
Reportagem da Agência Brasil mostrando dados do IBGE sobre insegurança alimentar no Brasil.
Reportagem da WRI Brasil mostrando meios de retirada de carbono da atmosfera como estratégia de mitigação da crise climática.
Vídeo no YouTube mostrando a Austrália fazendo o mínimo para acolher refugiados climáticos da Ilha de Tuvalu que vai desaparecer em 80 anos devido ao aumento do nível do mar.
Reportagem no Mundo Negro sobre a crítica contundente da Diretora Executiva da Anistia Internacional Brasil sobre a vibe capitalista da COP30.







