#12 O Ponto Cego
e a comunicação científica como um bom par de óculos.
Alguns livros têm o dom de movimentar as coisas - seja pela afinidade gerada ou pela discordância, obrigam que a discussão seja feita. O Ponto Cego – Por que a ciência não pode ignorar a experiência humana (Adam Frank, Marcelo Gleiser e Evan Thompson) é um bom exemplo disso, dedicando-se longamente a tirar um baita elefante da sala das ciências. Trata-se de um manifesto que questiona os alicerces da ciência moderna, expondo uma fissura dissonante que se forma desde o Iluminismo: a ilusão do saber absoluto e a exclusão sistemática da experiência subjetiva como parte do conhecimento válido.
O livro é ambicioso. Atravessa história e filosofia da ciência, cosmologia, biologia, física quântica, estudos de cognição e mudanças climáticas para mostrar que, ao longo dos séculos, estamos assimilando a percepção da realidade, construída a partir de dados científicos, como se fosse a própria realidade em si. Os autores descrevem que “a metafísica do ponto cego surge quando confundimos um método com a estrutura intrínseca da realidade”¹. Ou seja, a dificuldade de reconhecer que a explicação científica é uma narrativa construída a partir de dados, e não uma “visão divina dos fatos”. Quando acreditamos que nossas interpretações dos objetos analisados (como fórmulas, modelos, algoritmos) são a própria estrutura do universo, acabamos nos distanciando da noção que elas são aproximações, sistemas cognitivos que nos ajudam a compreender e produzir a partir disso, e não substituem a dimensão da experiência.
As ideais contidas no livro podem parecer abstratas, mas são possíveis de serem ilustradas em exemplos de diferentes áreas.
“Digamos, a estrutura dos átomos. A mecânica quântica fornece descrições precisas do comportamento das partículas e forças que regem o mundo atômico, delimitando o que se pode e não se pode conhecer a respeito delas a cada dado momento e circunstância. Isso naturalmente leva à tentação de imaginar que, quando falamos de quarks (componentes dos prótons e nêutrons) e léptons (grupo de partículas da qual os elétrons fazem parte), estamos falando da própria natureza, quando na verdade estamos discutindo um modelo (que se aproxima, talvez tanto quanto possível) da realidade.”²
O ponto cego seria esse gap. Os autores argumentam que é necessário um exame crítico e aprofundado a respeito da filosofia que tem norteado a evolução da ciência até aqui, apartada do universo contido no vão que contorna o ponto cego. O livro não versa contra a ciência e faz exatamente o oposto, trazendo uma discussão fundamental para a evolução e qualificação do método. É corajoso ao argumentar que há fazer científico possível a partir de outras bases filosóficas, ainda que não se proponha a definir esta resposta:
“Embora tenhamos apontado para muitas ideias científicas que vão além do Ponto Cego, não tentamos formular uma perspectiva científica ou filosófica abrangente para substituí-lo. Essa escolha é deliberada. A ciência é um projeto coletivo. É a dança emaranhada da construção colaborativa de teorias e experimentação que, em última análise, impulsiona a ciência para a frente... Nossa esperança é que, ao trazer o Ponto Cego para nossa visão coletiva, seremos mais capazes de encontrar novos caminhos além dele.” ³
Se no universo das instituições de pesquisa essa discussão pode ser compreendida como um paradoxo complexo, olhar o ponto cego à luz da divulgação científica é, pelo contrário, uma iluminação. Uma grande vantagem de estar na posição de versar sobre ciências na voz de comunicadora e não pesquisadora é, justamente, operar nessa fronteira, costurando a narrativa científica com a experiência individual das pessoas que são conectadas ao conhecimento. Exercer bem este trabalho demanda garantir que a informação não chegue ao público em estado bruto: ela é recebida e metabolizada por consciências, crenças, afetos, contextos e histórias de vida. A divulgação que se limita a despejar estatísticas e dados está abrindo mão da possibilidade única que temos aqui de tentar mitigar um pouco a tal cegueira do gap, justamente dançando com os conhecimentos.
Há um grau de liberdade no exercício da divulgação científica que nos permite considerar a dimensão da experiência humana e sermos estratégicos na forma como vamos deslocar os assuntos tratados. Longe de ser uma mera tradução de dados em linguagem acessível, a comunicação de ciências pode ser um espaço onde a subjetividade, a interpretação e o sentido que o público atribui ao conhecimento sejam parte da própria prática de ensinar e aprender ciência. É nesse ponto que os desafios epistemológicos do livro encontram um diálogo direto com o exercício da profissão que nós exercemos na Ciborga.
Na prática, isso significa assumir que comunicar ciências é lidar com identidade, com medo, com esperança, com narrativas de pertencimento. Significa reconhecer que quando alguém hesita diante da vacinação obrigatória, por exemplo, ou desconfia de pesquisas sobre mudanças climáticas, não estamos diante de uma falta de informação pura e simples, mas diante de um atrito de desconexão com os fatos que está também no campo da emoção pessoal. Lidar com a epidemia de desinformações, cada vez mais tsunâmica, exigirá de nós a elaboração profunda dessas desconexões, oferecendo narrativas que integrem dados às vivências individuais humanas.
No livro, os autores associam a forma moderna de fazer ciências com a leitura de mundo que a sociedade passa a ter, também afetada pelo ponto cego, sendo esta uma grande consequência danosa. A maneira como percebemos o que nos circunda é basal na forma como construímos os modos de vida e as respectivas crises decorrentes disso. Por essas e outras, a discussão proposta tem uma relevância tão grande. Seria o embrião de uma revolução ontológica, ainda que soe utópico imaginar tal transformação correndo num prazo razoável. Por outro lado, redefinir a função do divulgador científico, destacando seu potencial papel como equalizador entre diferentes realidades e as percepções do que consideramos real, isso é possível e pra já. Comunicar ciências é um caminho de ponte entre sentidos. Um veículo de reconexão. Ao articular fatos e percepções, o divulgador cumpre uma função faltosa: lembrar que, no cotidiano da vida, o conhecimento só se completa quando atravessado pela experiência. Ao cuidar dessa ponte, ajudamos a ciência a enxergar a si mesma com mais humanidade.
Até a próxima,
Nicole Manes
Curadoria
Livro: O ponto cego: Por que a ciência não pode ignorar a experiência humana (2025). Adam Frank, Marcelo Gleiser e Evan Thompsom.
Já conhece o podcast Ciência na Escuta?
Proposto por um coletivo de professores de ciências negros e estudantes engajados na defesa dos direitos humanos, o projeto cria um canal de comunicação científica acessível e prazerosa, guiado pela Ciência Cidadã e pelo protagonismo feminino.
A primeira temporada, financiada pelo Sindicato de Professores da UFMG, foi organizada a partir dos ODS da UNESCO para 2030. Os roteiros colaborativos são construídos por pesquisadores, representantes da sociedade civil e estudantes da E.E. Catarina Jorge Gonçalves (Contagem – MG), que também apresentam os episódios.
A cada episódio, os estudantes recebem dois especialistas em assuntos diversos. A metodologia desse podcast experimental, baseada em solidariedade, cooperação, colaboração e compartilhamento, é fruto das pesquisas e ações de extensão da Prof. Dra. Silvania Sousa do Nascimento, coordenadora do projeto.
Os episódios são quinzenais, sempre às quartas-feiras, aqui.
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